sábado, 19 de março de 2016

Umbraial

A missão tornou-se menos mórbida quando Izabele ouviu, à distância, o som incomum de uma sanfona. De início, pensou que ela própria estivesse criando a melodia, a partir de reminiscências de vidas passadas. Mas à medida que caminhava em determinada direção o volume da música aumentava, o que a fez querer investigar.

- Bora ali! - convidou Izabele seu parceiro de missão, Ualison.
- Vou nada! Pra onde mesmo? - respondeu o amigo, que na verdade tinha fama de topar qualquer parada.

Izabele pegou-o pela mão e levou-o ao morro, onde havia sentido a música.

- Tá ouvindo?
- Égua, Bele, tão tocando forró no Umbral.
- Pois é, gênio!
- E eu conheço essa música: "na vida não é de nada, do jeito que a vida vem, depois de fechar os  olhos, ninguém é ninguém"- cantarolou Ualison.
- Letra bem apropriada para o local!
- Mas quem diabo ia trazer uma sanfona pro Umbral? Pode isso?
- Talvez não seja propriamente uma sanfona, mas uma vibração de pensamento.
- Hein?
- Precisamos ver!

Arrebatado pela curiosidade, o casal atravessou o pântano que separava o Umbral da zona intermediária onde se encontravam. No caminho, cruzaram com pessoas soterradas pela lama,  pelejando para escapar daquela espécie de prisão na qual seus espíritos estavam encrustados. Seus corpos acinzentados assemelhavam-se aos de zumbis.

-Pobres almas! - compadeceu-se Izabele!
- Depois a gente vem aqui e presta alguma ajuda! Bora logo pro arrasta-lama! Tou doidim pra remexer o perispírito! - acrescentou Ualison, recordando uma de suas vidas, quando havia vencido dezenas de concursos de forró.

Já próximos do Umbraial (arraial no Umbral), Ualison e Izabele viram um jovem desavisado despertar  em meio ao som da sanfona e ao da algazarra da festa.

- Arre égua! Até aqui esse moído me persegue? Só posso estar no inferno mesmo! - reclamou o umbralino. Pelas tatuagens e a aversão ao gênero, só podia ter sido rockeiro na última encarnação.

Alguns passos depois, os missionários avistaram o local. Amplificado por uma caixa de som gigantesca, o som era ensurdecedor, sendo  possível, além de ouvi-lo, vê-lo. Notas musicais identificadas por feixes de luz coloridos, despontavam do fétido amplificador, de onde jorrava melodia e podridão.

Corpos  enlameados e fedorentos uniam-se num rala-bucho apocalíptico. Alguns completamente inconscientes flutuavam e seguiam a mesma coreografia,  guiados somente pela música. Outros, na tentativa de acertar o passo, vez por outra, enfiavam os pés na lama, desatolando-se, em seguida, a muito custo.

Izabele e Ualison sentiram uma vontade incontrolável de dançar agarradinhos. Faíscas de notas musicais os atingiam como raios e os faziam bailar, mesmo contra a vontade.

- Tou dançando, Ualison! Nunca dancei nada encarnada! Era dura como quem tomou sopa de gesso, mas, aqui, o requebrado tá danado de bom!
- Não fosse a catinga, tava melhor ainda! Mas a gente se acostuma!

Apesar da diversão, o casal temia estar participando de uma festa promovida por entidades não tão evoluídas e o fato de não conduzirem o próprio corpo começava a incomodar.

Num rompante de consciência, Izabele desvencilhou-se de Ualison e seguiu em direção à zona de origem do forró. Ao desprender-se da parceira, ele também passou a flutuar, fazendo sofisticadas coreografias .

Izabele deparou-se com o ponto central da festa após cruzar o salão pantanoso. Cercado por luzes, raios e sons estava um sanfoneiro. O músico cochilava, sentado em um tamborete, enquanto dedilhava o instrumento freneticamente.  A missionária sentiu que se tratava da alma de alguém ainda encarnado, em desdobramento espiritual. Tocou no ombro do músico, e ele reagiu como se tivesse tomado um choque.

No sítio Arrocha o Nó, planeta Terra, o sanfoneiro  Di Goys acordou assustado. Havia cochilado por alguns minutos e, como de costume, continuara tocando durante o sono, animando almas de encarnados e desencarnados.








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