quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Blog de quinta começa com sexta

Pensei ontem que ter um blog pode ser uma coisa muito boa pra alguém que quer adquirir o hábito de escrever, insanidade que me fez criar esse danado aqui. Sem mistério, o domínio bodegadogalego me pareceu escroto (no pior sentido da palavra mesmo), mas tive vontade de batizá-lo assim, e assim foi. Tem origem na minha remota infância. Sim, existiu (será que ainda existe?) uma bodega do Galego, em Juazeiro, onde todos os dias meu pai me mandava comprar meia carteira de cigarro roliúde. Eu ia até de bom grado, só não aceitava comprar de um em um, porque aí já era putaria.

Bem, na bodega do Galego sempre tinha um povo proseando, tomando cachaça, falando de tudo no mundo, se divertindo. É mais ou menos isso que quero fazer aqui - mas a cachaça é por conta de cada um. Além de seu significado original (natural da Galícia), galego é como se chama o povo louro, no Ceará, vide o Galeguim dos Zoi Azul, Tasso. Mas também, aqueles andarilhos que saem de porta em porta vendendo todo tipo de marmota. Em Juazeiro, minha terra natal, eles usam um carrinho de mão cheio de bugigangas. Ou seja, o meio é outro, mas as bugigangas do galego aqui (que tá mais pra negro) também estão garantidas.

Vez ou outra devo postar contos ou crônicas. O título blog de quinta, faz alusão a isso. Esse tipo de texto, de quinta categoria (?), pretendo postar às quintas. Por ironia, o conto que inaugura o blog intitula-se sexta-feira. Haja contradição! No mais, puxem um banco e tomem um trago.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Conto - Sexta-feira

Não tinha sequer mala para colocar troços e panos-de-bunda. Foi aí que avistou a bendita lata de querosene Jacaré, para onde transferiu cuidadosamente da gaveta da cômoda: álbum de figurinha da Placar, fio dental, cinco Playboys, fitas cassetes, uma garrafa de Dreher, sapato velho e livro de Leão Tolstói, que pedira emprestado e nunca leu. Coisas que conseguiam ser mais inúteis, arremessava-as numa cesta de lixo. Queria facilitar o expurgo da mulher, que ora abandonava por pura insistência dela. 

Por ele, ficava, embora não gostasse mais dela, ou mesmo da casa. Mas não gostar mais não queria dizer necessariamente ter que se separar. Todos os casais que conhecia se odiavam e viviam muito bem, obrigado. Não entendia o porquê dessa besteira de ser escorrçado de casa. Se não trabalhava, também não dava trabalho. Vivia trancado no quarto que fora da empregada, resolvendo palavra cruzada ou vendo TV. Sim, tomava seus porres, mas nem era todo dia. Além do mais, aprendera o civilizado hábito de se embriagar ouvindo fitas velhas dos Ramones, Sepultura e Guns no walkman, para não incomodar.

As poucas roupas caberiam numa caixa de papelão que ela gentilmente chutara em seus pés, como quem diz: "taí, se era só isso que faltava..." Entendera o recado tácito e foi dobrando a calça jeans e a de brim, a camisa com gola volta ao mundo, as quatro camisetas que comprara na promoção da C&A , o moleton surrado, as três cuecas furadas e a foló, os quatro calções de náilon que ela lhe deu de aniversário, e era só. Fechou o matolão improvisado com imbira, e feito boi que vai ao matadouro se arrastou até a porta da rua.

Pensou em dar um tchau às duas filhas, mas estavam na escola. Talvez fosse melhor para elas não gravarem na retina a imagem do pai indo embora daquela maneira, com uma mão na frente e outra atrás, o rabo entre as pernas ou qualquer outra expressão degradante que preferissem usar ao comentar a despedida.
Já na calçada, lembrou que não tinha ideia do próximo paradeiro. Não era de incomodar parentes ou aderentes. Se viraria. Precisava ainda dizer alguma coisa àquela mulher. Não sabia o que, mas precisava. Empilhou a lata de querosene Jacaré sobre a caixa e decidiu voltar, pelo menos para encará-la. Queria fitar de novo os olhos negros com os quais não cruzava há anos, desejá-la pela última vez, comê-la com a vista, se ela permitisse, e depois partir pra caixa bozó.

Foi o que fez. Lá estava ela, a cantarolar Roberto, pedalando a máquina de costura. Como se lêsse o pensamento dele, parou o pedal, calou e consentiu. Dois minutos sem dizer um nada foram suficientes para o gozo imagético. Ele respirou fundo, acendeu cigarro e saiu aliviado.

No terceiro passo em direção à porta, ouviu o barulho e sentiu a catinga do caminhão basculante. O quarto já foi com o pé na carreira, e foi assim até a décima passada, quando chegou ofegante à calçada e viu, resignado, os teréns girando no triturador. Só então lembrou que sexta-feira era dia de lixo.