Não se sabe o que veio primeiro, a indiferença ou a metamorfose. O certo é que há exatas duas semanas de ter conhecido Aurora, Zé já sentia uma vontade incontrolável de latejar a cabeça. Pensar que há poucos dias estavam ali, habitando extasiados aquele banco de praça. Encontrando tempo onde não havia, perdendo a hora. Conversando noites inteiras. Aurora, lua, a orbitar sobre Zé. Zé, planeta, a atraí-la.
Mantinham distância segura, como se soubessem do abismo que os esperava. Mas era como se não pudessem se afastar, circunscritos que estavam àquele universo.
Naquele sábado, contudo, Aurora, sem motivo aparente, se rebelou. Cruzou imperiosa a praça, com seu vestido negro e comprido. As costas nuas, camufladas pelos cabelos também escuros, foram apresentadas a Zé - ele que se preparara como nunca para encará-la. Mas ela já não o reconhecia. Não o diferenciava entre os transeuntes do lugar que fora deles habitat. Ignorou-o. Passou por Zé, em meio a uma procissão, sem descer do pedestal. Seria asco o que sentia? Não se sabia, tamanho o descaso e o silêncio.
Zé suplicou-lhe uma palavra que fosse. Nada! Talvez os olhos dela já vislumbrassem o que ele se tornaria.
Mantinham distância segura, como se soubessem do abismo que os esperava. Mas era como se não pudessem se afastar, circunscritos que estavam àquele universo.
Naquele sábado, contudo, Aurora, sem motivo aparente, se rebelou. Cruzou imperiosa a praça, com seu vestido negro e comprido. As costas nuas, camufladas pelos cabelos também escuros, foram apresentadas a Zé - ele que se preparara como nunca para encará-la. Mas ela já não o reconhecia. Não o diferenciava entre os transeuntes do lugar que fora deles habitat. Ignorou-o. Passou por Zé, em meio a uma procissão, sem descer do pedestal. Seria asco o que sentia? Não se sabia, tamanho o descaso e o silêncio.
Zé suplicou-lhe uma palavra que fosse. Nada! Talvez os olhos dela já vislumbrassem o que ele se tornaria.
Depois disso, foi reduzindo de tamanho, perdendo cabelo, espichando a língua. A antes fina derme convertia-se num couro grosso e acinzentado. O rabicho despontava, dando sinais de que iria eclodir numa hora dessas.
A mudança gradual e inexorável foi percebida em casa, subitamente, quando invadiram o quarto onde Zé se escondia, no momento em que se contorcia para virar-se e apoiar as quatro patas no chão.
A mudança gradual e inexorável foi percebida em casa, subitamente, quando invadiram o quarto onde Zé se escondia, no momento em que se contorcia para virar-se e apoiar as quatro patas no chão.
Preocupados, os parentes não o perdiam de vista. As mulheres levavam-no na bolsa, aonde quer que fossem; ele dividindo espaço com maquiagem, absorventes, cópias de identidade, talões de cheques, ginkgo biloba, cartões de crédito, pinça. Pai, irmãos e primos punham-no no bolso, embora se envergonhassem quando Zé botava a cabeça para fora na frente de estranhos. O cuidado lhe reconfortava a alma, já que o corpo... Sentia-se protegido como filhote de canguru, mas alimentava ardente desejo de ver a feiticeira uma vez mais. Calango aceso.
Certa noite, criou coragem e decidiu ir à praça sozinho. Estava disposto a topar com a mulher que o encantara, quiçá em busca do beijo de conto de fadas que o tornaria humano de novo. No caminho, rondando por esgotos e latas de lixo, teve que ejetar a cauda para enganar as tripas de um gato esfomeado. Além de réptil, aleijado, pensou.
A duras penas, desafiou os passantes e atravessou a praça, até subir a árvore que lhe daria visão panorâmica. Nem tentou resistir quando Aurora apareceu. Correu feito catita em seu encalço, na esperança de que ela adivinhasse que ele era ele, e o libertasse da mandinga. Saltos-agulha deram fim a seus planos, espetando-lhe as costas. Aurora desvencilhou-se de Zé com os calcanhares e seguiu incólume seu caminho, sem olhar para baixo.
Certa noite, criou coragem e decidiu ir à praça sozinho. Estava disposto a topar com a mulher que o encantara, quiçá em busca do beijo de conto de fadas que o tornaria humano de novo. No caminho, rondando por esgotos e latas de lixo, teve que ejetar a cauda para enganar as tripas de um gato esfomeado. Além de réptil, aleijado, pensou.
A duras penas, desafiou os passantes e atravessou a praça, até subir a árvore que lhe daria visão panorâmica. Nem tentou resistir quando Aurora apareceu. Correu feito catita em seu encalço, na esperança de que ela adivinhasse que ele era ele, e o libertasse da mandinga. Saltos-agulha deram fim a seus planos, espetando-lhe as costas. Aurora desvencilhou-se de Zé com os calcanhares e seguiu incólume seu caminho, sem olhar para baixo.