quarta-feira, 24 de março de 2010

Conto - Calango

Não se sabe o que veio primeiro, a indiferença ou a metamorfose. O certo é que há exatas duas semanas de ter conhecido Aurora, Zé já sentia uma vontade incontrolável de latejar a cabeça. Pensar que há poucos dias estavam ali, habitando extasiados aquele banco de praça. Encontrando tempo onde não havia, perdendo a hora. Conversando noites inteiras. Aurora, lua, a orbitar sobre Zé. Zé, planeta, a atraí-la. 

Mantinham distância segura, como se soubessem do abismo que os esperava. Mas era como se não pudessem se afastar, circunscritos que estavam àquele universo. 

Naquele sábado, contudo, Aurora, sem motivo aparente, se rebelou. Cruzou imperiosa a praça, com seu vestido negro e comprido. As costas nuas, camufladas pelos cabelos também escuros, foram apresentadas a Zé - ele que se preparara como nunca para encará-la. Mas ela já não o reconhecia. Não o diferenciava entre os transeuntes do lugar que fora deles habitat. Ignorou-o. Passou por Zé, em meio a uma procissão, sem descer do pedestal. Seria asco o que sentia? Não se sabia, tamanho o descaso e o silêncio.

Zé suplicou-lhe uma palavra que fosse. Nada! Talvez os olhos dela já vislumbrassem o que ele se tornaria. 

Depois disso, foi reduzindo de tamanho, perdendo cabelo, espichando a língua. A antes fina derme convertia-se num couro grosso e acinzentado. O rabicho despontava, dando sinais de que iria eclodir numa hora dessas.  

A mudança gradual e inexorável foi percebida em casa, subitamente, quando invadiram o quarto onde Zé se escondia, no momento em que se contorcia para virar-se e apoiar as quatro patas no chão. 

Preocupados, os parentes não o perdiam de vista. As mulheres levavam-no na bolsa, aonde quer que fossem; ele dividindo espaço com maquiagem, absorventes, cópias de identidade, talões de cheques, ginkgo biloba, cartões de crédito, pinça. Pai, irmãos e primos punham-no no bolso, embora se envergonhassem quando Zé botava a cabeça para fora na frente de estranhos. O cuidado lhe reconfortava a alma, já que o corpo... Sentia-se protegido como filhote de canguru, mas alimentava ardente desejo de ver a feiticeira uma vez mais. Calango aceso.

Certa noite, criou coragem e decidiu ir à praça sozinho. Estava disposto a topar com a mulher que o encantara, quiçá em busca do beijo de conto de fadas que o tornaria humano de novo. No caminho, rondando por esgotos e latas de lixo, teve que ejetar a cauda para enganar as tripas de um gato esfomeado. Além de réptil, aleijado, pensou.

A duras penas, desafiou os passantes e atravessou a praça, até subir a árvore que lhe daria visão panorâmica. Nem tentou resistir quando Aurora apareceu. Correu feito catita em seu encalço, na esperança de que ela adivinhasse que ele era ele, e o libertasse da mandinga. Saltos-agulha deram fim a seus planos, espetando-lhe as costas. Aurora desvencilhou-se de Zé com os calcanhares e seguiu incólume seu caminho, sem olhar para baixo.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Conto - Mulher-recheio

“Lá vem ele”, diz ela, e desliga o telefone. Fala alto, como se quisesse me dar ciência de que o assunto era eu. Acho estranho, mas me derreto ao ver a saia curta e as pernas, as pernas... Vou beijá-la na boca, mas ela vira o rosto e empurra meu peito com certa delicadeza. Sinto suas unhas afiadas e isso me excita. Bora ver o filme? Pergunto. Não sei, responde. Penso: e quem sabe?

Talvez ele saiba. Ele, o cara que aparece do nada, tomando-a pelo braço e arrastando-a sem pedir licença. Ela não resiste. Gesticulam muito ao conversar. Parecem discutir. Agora, ele me aponta o dedo e sorri. O negro tem a cabeça raspada e deve ter o dobro do meu peso, em músculos. Acabaria comigo com um murro, se quisesse. À distância, espero o diálogo acabar. As pernas, as pernas...

Ta quase na hora do filme. Ela olha o relógio e o cumprimenta, passando a mão na careca. Volta serelepe e me abraça. Vai começar, diz, conduzindo-me, com a mão na minha cintura, à bilheteria. Pago as entradas, compro coca cola e pipoca. Parece animada. Trailers. Encosta o rosto no meu ombro. Acaricio seus cabelos.

Quando o tiro fura a bola, fazendo-a espocar no ar, ela diz que vai ao banheiro. Cinco minutos se passam. Dez, quinze... Fico impaciente e resolvo procurá-la. Encontro. De longe eu a vejo de braço com o brutamontes, perambulando pelo shopping. Penso em correr até eles. Resolvo manter a distância e segui-los.

No estacionamento, vejo-os conversar com um magrelo de bigode. Riem bastante. Sem muita prosa, os três sobem na moto. Ela ensaduichada entre eles. Que pernas, que pernas...

domingo, 7 de março de 2010

Conto - O "cubo"

Precisou de coragem para entrar naquele caixão de vidro a troco de nada. Sentia que algo a impelia a ser o primeiro a dar o exemplo - talvez o simples prazer de ganhar de si mesma. Os oponentes estavam animados para se contorcer naquela medonha caixa vertical. Podia ouvir o borburinho dos que, assim como ela , aguardavam ansiosos as ordens da mulher do apito. Com postura militar e uniforme branco de enfermeira, exceto pela ausência da cruz vermelha no quepe, ela ultimava as providências para dar início à disputa. Empenhava-se em acomodar os adversários na fila, que já se estendia por pelo menos vinte metros. Os mais compenetrados plantavam bananeira ali mesmo, ensaiando as performances que fariam dentro do "cubo". Outros recebiam instruções, como pugilistas prestes a entrar no ringue. Os pais faziam as vezes de técnicos, abanando toalhas e encenando gestos de força e otimismo. Tudo parecia fazer sentido.

Finalmente, a porta de vidro se abre à espera. Coração dispara. O burburinho dá lugar ao silêncio, que aumenta a cada passo até tornar-se absoluto quando o paralelepípedo transparente é fechado. Olha para cima e se tranquiliza ao ver que existem pequenos buracos circulares no teto, por onde o ar penetra. Respira aliviada. À frente, podia enxergar o corpo de jurados. Eram cinco. Um deles entorna um copo de refrigerante. O dia está quente.

Um cronômetro grudado na lateral esquerda da caixa começa a contar. Os números vermelhos giram freneticamente e avisam que ela precisa ser rápida. Tem um minuto para se apresentar. A coreografia surge de imediato em sua mente e, como se não tivesse controle do próprio corpo, ela começa a executar os movimentos: mãos na cintura, braços e pernas dispostos em “X”, palmas das mãos no chão sem dobrar os joelhos. Agora de ponta-cabeça, gruda os pés nas laterais do cubo e bate palmas. Depois volta à posição original, sobe como aranha até o teto e se sustenta somente com as mãos, por alguns segundos, completando a série de exercícios de força e equilíbrio. Nesse instante, se desaponta ao ver cadeiras vazias no júri. A própria árbitra faz pouco caso de seu esforço e lhe dá as costas.

A decepção a desconcentra, mas não a ponto de derrubá-la. Resta ainda a série artística. Não pode errar. Talvez o descaso do júri faça parte do jogo, se ilude. Ainda com pés e mãos grudados nas paredes de vidro, gira cento e oitenta graus, na horizontal sem pisar no solo. Fica novamente de cabeça para baixo e mergulha no chão, onde, com um rodopio se põe de pé com os braços abertos, cumprimentando os gatos pingados da plateia.

O caixão é descerrado e ela sai sem ovação. Tem a sensação de que tudo o que fez e o que deixou de fazer foi ignorado por todos, e esse sentimento a fustiga.

Na sequência, um menino ocupa seu lugar . Está nervoso; mal consegue escalar as paredes e realizar o primeiro movimento. Mira-a como se lhe pedisse ajuda. Com um olhar,ela tenta transmitir-lhe que não adianta, que ninguém liga, que aquele jogo é irreal, e, ao reconhecer o absurdo, entende que aquilo não passa de um pesadelo.

Mesmo consciente, permanece sonhando, à espera de explicação a ser criada por ela mesma, até ver O menino despencar de cabeça. O choque a desperta e, ainda em sobressalto, encara perplexa o ventilador de teto.