sexta-feira, 18 de junho de 2010

Crônica - O Céu efêmero dos deuses desconhecidos

Tshabalala jamais esquecerá o feito de ter marcado o primeiro gol da Copa de 2010. Mas e nós? E o mundo que acabou de consagrá-lo? A verdade é que dificilmente o sonoro nome do atacante da África do Sul ressoará em nossos ouvidos como agora, mesmo porque, após ser goleada pelo Uruguai, a seleção de seu País só nãoprecisou  arrumar as malas porque já está em casa.

O maior evento esportivo do mundo tem dessas. Em pouco tempo, alguém sobre o qual não tínhamos a menor ideia da existência faz uma marmota e estamos lá, fingindo intimidade. Me diverte muito ver o aperreio de narradores e comentaristas quando se deparam com uma seleção como a da Coreia do Sul, cuja escalação escrota conta com Myonge Guk, Jong Hyok, Chol Jin, Jun Il, Nam Chol, Kwang Chon, entre outros ilustres desconhecidos. Sobre Tae Se, o menos anônimo da turma, eles falam com propriedade de quem já acompanha sua carreira desde o juvenil. Em toda bodega, inclusive nessa, se comneta o choro incontido do pobre, durante a execução do hino de seu país na estreia contra nossa Seleção.

É lógico que para os não-loucos-de-futebol a Internet ajuda muito. Num instante se sabia que o careca emotivo não era norte-coreano e, sim, japonês, que é conhecido como o Rooney Asiático, que joga no Kawasaki Frontale etc. Neste exato momento, a busca por Tae Se representa 8,1 milhões de notícias no Google.

No mesmo buscador, se você colocar as iniciais Tsh, o segundo nome sugerido é Tshabalala. Minha vizinha sexagenária o reconhece como “o das trancinhas” e Paulo Vinícios Coelho, o comentarista esportivo mais bem informado do Brasil, já o meteu em suas estatísticas. Após o atacante chutar a Jabulane nas alturas, no funesto jogo contra o Uruguai, PVC cravou: “alguém tem que avisar pro Tshabalala que nem todo dia é dia de caqui. Em 50 jogos pela África do Sul ele só fez sete gols”.

E assim se fazem ou se desfazem os ídolos das Copas. O sulafricano com quem a torcida do Flamengo já sonhava, ensaiando o coro ÔOOOOOOOOOO Tshabalala chegou” foi de herói a vilão, num simples passe (errado) de mágica. 

Talvez esta seja a última Copa de Tshabalala. Já foi o suficiente pra ele entrar pra história, mas daí a retermos o nome dele na memória são outros quinhentos. Guardemos então nesta crônica, até o dia em que PVC, eventualmente, disser: “esse é o segundo gol de Tshabalala em Copas. O primeiro foi marcado na da África do Sul, que, por sinal, foi também o primeiro daquele Mundial”.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Conto - Calango

Não se sabe o que veio primeiro, a indiferença ou a metamorfose. O certo é que há exatas duas semanas de ter conhecido Aurora, Zé já sentia uma vontade incontrolável de latejar a cabeça. Pensar que há poucos dias estavam ali, habitando extasiados aquele banco de praça. Encontrando tempo onde não havia, perdendo a hora. Conversando noites inteiras. Aurora, lua, a orbitar sobre Zé. Zé, planeta, a atraí-la. 

Mantinham distância segura, como se soubessem do abismo que os esperava. Mas era como se não pudessem se afastar, circunscritos que estavam àquele universo. 

Naquele sábado, contudo, Aurora, sem motivo aparente, se rebelou. Cruzou imperiosa a praça, com seu vestido negro e comprido. As costas nuas, camufladas pelos cabelos também escuros, foram apresentadas a Zé - ele que se preparara como nunca para encará-la. Mas ela já não o reconhecia. Não o diferenciava entre os transeuntes do lugar que fora deles habitat. Ignorou-o. Passou por Zé, em meio a uma procissão, sem descer do pedestal. Seria asco o que sentia? Não se sabia, tamanho o descaso e o silêncio.

Zé suplicou-lhe uma palavra que fosse. Nada! Talvez os olhos dela já vislumbrassem o que ele se tornaria. 

Depois disso, foi reduzindo de tamanho, perdendo cabelo, espichando a língua. A antes fina derme convertia-se num couro grosso e acinzentado. O rabicho despontava, dando sinais de que iria eclodir numa hora dessas.  

A mudança gradual e inexorável foi percebida em casa, subitamente, quando invadiram o quarto onde Zé se escondia, no momento em que se contorcia para virar-se e apoiar as quatro patas no chão. 

Preocupados, os parentes não o perdiam de vista. As mulheres levavam-no na bolsa, aonde quer que fossem; ele dividindo espaço com maquiagem, absorventes, cópias de identidade, talões de cheques, ginkgo biloba, cartões de crédito, pinça. Pai, irmãos e primos punham-no no bolso, embora se envergonhassem quando Zé botava a cabeça para fora na frente de estranhos. O cuidado lhe reconfortava a alma, já que o corpo... Sentia-se protegido como filhote de canguru, mas alimentava ardente desejo de ver a feiticeira uma vez mais. Calango aceso.

Certa noite, criou coragem e decidiu ir à praça sozinho. Estava disposto a topar com a mulher que o encantara, quiçá em busca do beijo de conto de fadas que o tornaria humano de novo. No caminho, rondando por esgotos e latas de lixo, teve que ejetar a cauda para enganar as tripas de um gato esfomeado. Além de réptil, aleijado, pensou.

A duras penas, desafiou os passantes e atravessou a praça, até subir a árvore que lhe daria visão panorâmica. Nem tentou resistir quando Aurora apareceu. Correu feito catita em seu encalço, na esperança de que ela adivinhasse que ele era ele, e o libertasse da mandinga. Saltos-agulha deram fim a seus planos, espetando-lhe as costas. Aurora desvencilhou-se de Zé com os calcanhares e seguiu incólume seu caminho, sem olhar para baixo.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Conto - Mulher-recheio

“Lá vem ele”, diz ela, e desliga o telefone. Fala alto, como se quisesse me dar ciência de que o assunto era eu. Acho estranho, mas me derreto ao ver a saia curta e as pernas, as pernas... Vou beijá-la na boca, mas ela vira o rosto e empurra meu peito com certa delicadeza. Sinto suas unhas afiadas e isso me excita. Bora ver o filme? Pergunto. Não sei, responde. Penso: e quem sabe?

Talvez ele saiba. Ele, o cara que aparece do nada, tomando-a pelo braço e arrastando-a sem pedir licença. Ela não resiste. Gesticulam muito ao conversar. Parecem discutir. Agora, ele me aponta o dedo e sorri. O negro tem a cabeça raspada e deve ter o dobro do meu peso, em músculos. Acabaria comigo com um murro, se quisesse. À distância, espero o diálogo acabar. As pernas, as pernas...

Ta quase na hora do filme. Ela olha o relógio e o cumprimenta, passando a mão na careca. Volta serelepe e me abraça. Vai começar, diz, conduzindo-me, com a mão na minha cintura, à bilheteria. Pago as entradas, compro coca cola e pipoca. Parece animada. Trailers. Encosta o rosto no meu ombro. Acaricio seus cabelos.

Quando o tiro fura a bola, fazendo-a espocar no ar, ela diz que vai ao banheiro. Cinco minutos se passam. Dez, quinze... Fico impaciente e resolvo procurá-la. Encontro. De longe eu a vejo de braço com o brutamontes, perambulando pelo shopping. Penso em correr até eles. Resolvo manter a distância e segui-los.

No estacionamento, vejo-os conversar com um magrelo de bigode. Riem bastante. Sem muita prosa, os três sobem na moto. Ela ensaduichada entre eles. Que pernas, que pernas...

domingo, 7 de março de 2010

Conto - O "cubo"

Precisou de coragem para entrar naquele caixão de vidro a troco de nada. Sentia que algo a impelia a ser o primeiro a dar o exemplo - talvez o simples prazer de ganhar de si mesma. Os oponentes estavam animados para se contorcer naquela medonha caixa vertical. Podia ouvir o borburinho dos que, assim como ela , aguardavam ansiosos as ordens da mulher do apito. Com postura militar e uniforme branco de enfermeira, exceto pela ausência da cruz vermelha no quepe, ela ultimava as providências para dar início à disputa. Empenhava-se em acomodar os adversários na fila, que já se estendia por pelo menos vinte metros. Os mais compenetrados plantavam bananeira ali mesmo, ensaiando as performances que fariam dentro do "cubo". Outros recebiam instruções, como pugilistas prestes a entrar no ringue. Os pais faziam as vezes de técnicos, abanando toalhas e encenando gestos de força e otimismo. Tudo parecia fazer sentido.

Finalmente, a porta de vidro se abre à espera. Coração dispara. O burburinho dá lugar ao silêncio, que aumenta a cada passo até tornar-se absoluto quando o paralelepípedo transparente é fechado. Olha para cima e se tranquiliza ao ver que existem pequenos buracos circulares no teto, por onde o ar penetra. Respira aliviada. À frente, podia enxergar o corpo de jurados. Eram cinco. Um deles entorna um copo de refrigerante. O dia está quente.

Um cronômetro grudado na lateral esquerda da caixa começa a contar. Os números vermelhos giram freneticamente e avisam que ela precisa ser rápida. Tem um minuto para se apresentar. A coreografia surge de imediato em sua mente e, como se não tivesse controle do próprio corpo, ela começa a executar os movimentos: mãos na cintura, braços e pernas dispostos em “X”, palmas das mãos no chão sem dobrar os joelhos. Agora de ponta-cabeça, gruda os pés nas laterais do cubo e bate palmas. Depois volta à posição original, sobe como aranha até o teto e se sustenta somente com as mãos, por alguns segundos, completando a série de exercícios de força e equilíbrio. Nesse instante, se desaponta ao ver cadeiras vazias no júri. A própria árbitra faz pouco caso de seu esforço e lhe dá as costas.

A decepção a desconcentra, mas não a ponto de derrubá-la. Resta ainda a série artística. Não pode errar. Talvez o descaso do júri faça parte do jogo, se ilude. Ainda com pés e mãos grudados nas paredes de vidro, gira cento e oitenta graus, na horizontal sem pisar no solo. Fica novamente de cabeça para baixo e mergulha no chão, onde, com um rodopio se põe de pé com os braços abertos, cumprimentando os gatos pingados da plateia.

O caixão é descerrado e ela sai sem ovação. Tem a sensação de que tudo o que fez e o que deixou de fazer foi ignorado por todos, e esse sentimento a fustiga.

Na sequência, um menino ocupa seu lugar . Está nervoso; mal consegue escalar as paredes e realizar o primeiro movimento. Mira-a como se lhe pedisse ajuda. Com um olhar,ela tenta transmitir-lhe que não adianta, que ninguém liga, que aquele jogo é irreal, e, ao reconhecer o absurdo, entende que aquilo não passa de um pesadelo.

Mesmo consciente, permanece sonhando, à espera de explicação a ser criada por ela mesma, até ver O menino despencar de cabeça. O choque a desperta e, ainda em sobressalto, encara perplexa o ventilador de teto.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Blog de quinta começa com sexta

Pensei ontem que ter um blog pode ser uma coisa muito boa pra alguém que quer adquirir o hábito de escrever, insanidade que me fez criar esse danado aqui. Sem mistério, o domínio bodegadogalego me pareceu escroto (no pior sentido da palavra mesmo), mas tive vontade de batizá-lo assim, e assim foi. Tem origem na minha remota infância. Sim, existiu (será que ainda existe?) uma bodega do Galego, em Juazeiro, onde todos os dias meu pai me mandava comprar meia carteira de cigarro roliúde. Eu ia até de bom grado, só não aceitava comprar de um em um, porque aí já era putaria.

Bem, na bodega do Galego sempre tinha um povo proseando, tomando cachaça, falando de tudo no mundo, se divertindo. É mais ou menos isso que quero fazer aqui - mas a cachaça é por conta de cada um. Além de seu significado original (natural da Galícia), galego é como se chama o povo louro, no Ceará, vide o Galeguim dos Zoi Azul, Tasso. Mas também, aqueles andarilhos que saem de porta em porta vendendo todo tipo de marmota. Em Juazeiro, minha terra natal, eles usam um carrinho de mão cheio de bugigangas. Ou seja, o meio é outro, mas as bugigangas do galego aqui (que tá mais pra negro) também estão garantidas.

Vez ou outra devo postar contos ou crônicas. O título blog de quinta, faz alusão a isso. Esse tipo de texto, de quinta categoria (?), pretendo postar às quintas. Por ironia, o conto que inaugura o blog intitula-se sexta-feira. Haja contradição! No mais, puxem um banco e tomem um trago.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Conto - Sexta-feira

Não tinha sequer mala para colocar troços e panos-de-bunda. Foi aí que avistou a bendita lata de querosene Jacaré, para onde transferiu cuidadosamente da gaveta da cômoda: álbum de figurinha da Placar, fio dental, cinco Playboys, fitas cassetes, uma garrafa de Dreher, sapato velho e livro de Leão Tolstói, que pedira emprestado e nunca leu. Coisas que conseguiam ser mais inúteis, arremessava-as numa cesta de lixo. Queria facilitar o expurgo da mulher, que ora abandonava por pura insistência dela. 

Por ele, ficava, embora não gostasse mais dela, ou mesmo da casa. Mas não gostar mais não queria dizer necessariamente ter que se separar. Todos os casais que conhecia se odiavam e viviam muito bem, obrigado. Não entendia o porquê dessa besteira de ser escorrçado de casa. Se não trabalhava, também não dava trabalho. Vivia trancado no quarto que fora da empregada, resolvendo palavra cruzada ou vendo TV. Sim, tomava seus porres, mas nem era todo dia. Além do mais, aprendera o civilizado hábito de se embriagar ouvindo fitas velhas dos Ramones, Sepultura e Guns no walkman, para não incomodar.

As poucas roupas caberiam numa caixa de papelão que ela gentilmente chutara em seus pés, como quem diz: "taí, se era só isso que faltava..." Entendera o recado tácito e foi dobrando a calça jeans e a de brim, a camisa com gola volta ao mundo, as quatro camisetas que comprara na promoção da C&A , o moleton surrado, as três cuecas furadas e a foló, os quatro calções de náilon que ela lhe deu de aniversário, e era só. Fechou o matolão improvisado com imbira, e feito boi que vai ao matadouro se arrastou até a porta da rua.

Pensou em dar um tchau às duas filhas, mas estavam na escola. Talvez fosse melhor para elas não gravarem na retina a imagem do pai indo embora daquela maneira, com uma mão na frente e outra atrás, o rabo entre as pernas ou qualquer outra expressão degradante que preferissem usar ao comentar a despedida.
Já na calçada, lembrou que não tinha ideia do próximo paradeiro. Não era de incomodar parentes ou aderentes. Se viraria. Precisava ainda dizer alguma coisa àquela mulher. Não sabia o que, mas precisava. Empilhou a lata de querosene Jacaré sobre a caixa e decidiu voltar, pelo menos para encará-la. Queria fitar de novo os olhos negros com os quais não cruzava há anos, desejá-la pela última vez, comê-la com a vista, se ela permitisse, e depois partir pra caixa bozó.

Foi o que fez. Lá estava ela, a cantarolar Roberto, pedalando a máquina de costura. Como se lêsse o pensamento dele, parou o pedal, calou e consentiu. Dois minutos sem dizer um nada foram suficientes para o gozo imagético. Ele respirou fundo, acendeu cigarro e saiu aliviado.

No terceiro passo em direção à porta, ouviu o barulho e sentiu a catinga do caminhão basculante. O quarto já foi com o pé na carreira, e foi assim até a décima passada, quando chegou ofegante à calçada e viu, resignado, os teréns girando no triturador. Só então lembrou que sexta-feira era dia de lixo.